
No coração da Amazônia, a distância e a falta de recursos ainda impedem que milhares de crianças tenham acesso a uma educação de qualidade. A boa notícia é que um projeto inovador está levando aprendizado e esperança para as escolas ribeirinhas, onde antes só havia improviso.
Imagina só ter de navegar por até três dias inteiros para chegar ao centro da cidade onde você mora. Parece muito? Pois essa é a realidade de milhares de pessoas que vivem em comunidades ribeirinhas na Amazônia. É assim para boa parte dos moradores de Novo Airão (AM), por exemplo, na região metropolitana de Manaus. Localizado na margem direita do Rio Negro, o município tem mais de 37 mil km² de extensão – para comparar, isso é mais do que todo o território da Bélgica. É floresta que não acaba mais. Para quem mora na área urbana, o tamanho do município mal faz diferença. Agora, para quem está na zona rural, vivendo na beira do rio e no meio da mata, cada quilômetro a mais é um obstáculo.
As comunidades ribeirinhas vivem isoladas não só da urbanização, mas também das oportunidades que permitem sonhar com um futuro diferente. O isolamento faz com que o básico se torne artigo de luxo. Faltam água tratada, energia elétrica, internet, saúde e… educação de qualidade.
Sem infraestrutura nem acesso a materiais básicos ou condições adequadas de ensino, alunos, professores e comunidade se viram como podem para driblar os obstáculos que a vida na floresta impõe. Para manter as crianças na sala de aula, a saída é uma só: somar esforços.
É justamente isso que, desde 2021, a Fundação Almerinda Malaquias (FAM) tem feito. Ao lado da Secretaria Municipal de Educação, e com recursos de doação da iniciativa privada, a organização tem trabalhado para reformar e construir 24 escolas em comunidades isoladas de Novo Airão. O objetivo do Projeto Educação Ribeirinha é impactar a vida de mais de 750 crianças, aprimorando a infraestrutura escolar e garantindo melhores condições de ensino, tanto para os alunos quanto para os educadores.
Graças à iniciativa, as novas escolas estão levando o mínimo de conforto e dignidade para onde antes só havia improviso. Uma “pequena revolução”, como diz o empresário paulista Ruy Tone, presidente da FAM. “O Paul Clark, fundador da Vivamazônia [veja mais na pág. 60], disse uma vez que uma escola, sozinha, não muda muita coisa. Para ter uma pequena revolução, teriam de ser 20, 30, 50 escolas. Foi essa frase que nos levou a criar o Projeto Educação Ribeirinha. Porque o Paul tem razão. Ou a gente muda todas ou nada muda”, conclui.
CRESCER passou cinco dias navegando pela região do Baixo Rio Negro para ver de perto como o Projeto Educação Ribeirinha tem impactado a rotina das escolas e das comunidades em Novo Airão. Agora, contamos aqui um pouco do que vimos, ouvimos e descobrimos por lá.


A ROTINA DE QUEM ENSINA
Toda segunda, o professor Carlos dos Anjos Nogueira sai de casa no centro urbano de Novo Airão às 5h da manhã e pega um barco floresta adentro. Navega por mais de uma hora até chegar à comunidade de Sobrado, onde trabalha. Ali ele fica a semana toda dando aula para as turmas de 7º e 8º ano, todos juntos, ao mesmo tempo, na mesma sala. Só volta para casa de novo na sexta, depois do almoço. “Eu era professor de inglês no município, mas em 2024 pedi para vir para cá. Queria sair um pouco e ver como é a realidade mesmo. As crianças aqui são muito carentes de estudo. Queria ter essa experiência do multisseriado, fui pesquisando, pesquisando e agora eu dou cinco disciplinas”, conta.
Para quem estava acostumado a dar aula só de língua estrangeira, foi desafiador ter de ensinar geografia, ciências… Mas, fora o ensino, o maior desafio mesmo tem sido a distância de casa. “A gente tem que abrir mão de um monte de coisa. É meu primeiro ano aqui, mas não me adaptei tão bem. Socializo só quando vou jogar bola ou aparece alguma visita. Não tem TV nem celular. Rádio, só para ouvir música. O psicológico tem que estar bem preparado, se não tu desiste.”
O pedagogo Elias Baltazar também teve de aceitar condições menos confortáveis quando topou trabalhar na Escola Indígena Myry, na comunidade Mirituba. Hoje, ele dorme em uma rede num quartinho improvisado no espaço onde deveria funcionar a cozinha da escola.
A educação dos ribeirinhos segue o ritmo dos rios. Se a correnteza permite, as crianças vão à escola. Se a água baixa, a lição do dia é aprender a esperar.
A expectativa é que, em breve, graças ao Projeto Educação Ribeirinha, ele ganhe um alojamento novo e confortável para chamar de seu.
Ele conta que, desde que chegou, no começo de 2024, muita coisa já mudou. Antes, seus alunos não conheciam as quatro operações básicas e só sabiam contar até 200. Sem material dourado à disposição, ensinou matemática usando as sementes de tucumã que as crianças recolhiam na comunidade — tipo de improviso que, ele garante, nem a graduação em pedagogia nem os cursos de formação do governo ensinam. “Nas formações, eles tratam os professores da zona ribeirinha como se fossem da zona urbana e como se a gente tivesse pedagogo, gestor… Só que é totalmente diferente. Não falam de multisseriado, por exemplo, e eu dou aula para dez alunos, do pré ao nono ano, na mesma sala. Na comunidade, o professor é tudo: gestor, enfermeira, médico, juiz”, desabafa Baltazar.


O DESAFIO PARA APRENDER
A educação dos ribeirinhos segue o ritmo dos rios. Se a correnteza permite, as crianças vão à escola. Se a água baixa, a lição do dia é aprender a esperar. Até o calendário escolar tem de se adaptar à dinâmica da natureza.
Nas comunidades ribeirinhas de Novo Airão, o ano letivo começa em janeiro e só termina em outubro, quando as águas começam a descer e fica difícil navegar até as escolas. Para garantir os 200 dias letivos, exigidos pelo Ministério da Educação (MEC), não tem jeito: as crianças ficam sem férias no meio do ano.
Quando fomos a Novo Airão produzir esta reportagem – no fim de setembro de 2024 –, ainda faltava um mês para as férias escolares. O Rio Negro passava por uma seca histórica, a menor marca em mais de 120 anos de medição. Navegar pela região, obviamente, não estava sendo das tarefas mais fáceis. O nível do rio estava tão baixo que nós, da reportagem, nem conseguimos chegar até algumas das escolas que estavam na programação. Os alunos dessas escolas, obviamente, também não.
Inclusive, um dos maiores desafios da educação ribeirinha ainda é o acesso. Afinal, como fazer com que crianças que vivem em áreas remotas cheguem até o colégio? É aí que entra o trabalho de pessoas como Ademilson Macedo, que atua como canoeiro na Escola São José, na comunidade de Sobrado. Todos os dias, ele coloca a canoa no rio, busca os alunos em casa pela manhã e leva embora depois do fim da aula, na hora do almoço. Assim como outros canoeiros, ele é contratado pela prefeitura de Novo Airão. Recebe um salário e 80 litros de combustível por mês para fazer a sua rota. Se, ainda durante o ano letivo, algum aluno fica ilhado por causa do baixo nível do rio, Ademilson é também o responsável por fazer as “aulas remotas” acontecerem. Toda segunda, vai de casa em casa, levando as atividades e, na sexta, volta para recolher e devolver as tarefas para os professores corrigirem.
“O povo aqui tem muito na mente que precisa ter uma zagaia, uma bateria e uma lanterna para viver. A gente explica que não é só isso. Tem que ter estudo também. Daqui tem que sair um professor, um advogado, um vereador… Para a gente seria importante dizer ‘Olha, o fulano estudou aqui e ele é médico’”, diz.
A INFRAESTRUTURA ESCASSA
Nem tudo na Amazônia é sobre abundância. Tem um rio correndo na porta da sala de aula, mas nem sempre tem água tratada e encanada. As árvores garantem sombra do lado de fora, mas dentro da escola o calor aperta, sem ar-condicionado e sem brisa para aliviar.
Até pouco tempo atrás, na comunidade do Sobrado, as merendeiras Sebastiana dos Reis e Ivone Barbosa Lopes trabalhavam debaixo do sol, no improviso mesmo. Como não tinham nem pia para lavar a louça, o jeito era fazer isso na beira do rio. A situação só mudou no fim de 2022, quando o Projeto Educação Ribeirinha entregou uma cozinha ampla, reformada, equipada com balcão, fogão e, finalmente, pia.
“O espaço é bem melhor. Antes, a merenda saía até um pouco atrasada. Agora, como a cozinha está organizada, sai no horário. Sinto a diferença no rosto das crianças, dá gosto de trabalhar”, diz Ivone.
De tempos em tempos, uma nutricionista indicada pela Secretaria Municipal de Educação envia um cardápio para que as merendeiras possam seguir. Na falta dos ingredientes necessários, improvisam com o que têm à mão. No dia da nossa visita à escola, o cardápio do almoço era macarrão, arroz, feijão e frango.
Basta o sino tocar para que as crianças venham correndo e se sentem à mesa. Antes, as salas de aula ficavam longe do banheiro e do refeitório. Nos dias de chuva, os alunos tinham de se molhar para fazer xixi ou para merendar. Agora, ainda bem, isso é só uma história para contar.
Arquitetura premiada
O projeto Educação Ribeirinha ganhou o iF Design Award, na categoria Arquitetura. A premiação existe desde 1954 e reconhece soluções de design inovadoras. Resultado do trabalho do arquiteto Marko Brajovic, o desenho do projeto conversa com a realidade ribeirinha: uma estrutura modular, com bases de cimento elevadas e madeira certificada.
A ideia é que, ao fim do projeto, todas as escolas tenham ventilação cruzada natural protegida por mosquiteiros, garantindo conforto térmico, iluminação e proteção contra os insetos. Algumas escolas já passaram por reformas, outras estão sendo reconstruídas do zero. As fachadas e demais elementos serão personalizados pela comunidade, com materiais locais e referências culturais.
Cultura preservada
Garantir educação em localidades remotas é também uma forma de preservar a cultura ribeirinha e cabocla. Com escolas nas comunidades, as famílias não precisam migrar cedo para a cidade em busca de ensino para as crianças. É por isso que, na floresta, escola significa também manter vivas as raízes.
Na comunidade Mirituba, moram indígenas da etnia Apurinã. Dona Maria, a cacique, sempre quis que suas crianças tivessem acesso à educação. “Escola é mais importante do que igreja, elas precisam estudar”, dizia. Por mais que o colégio tenha sido uma conquista, nem sempre o ensino dialoga com a realidade local.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que orienta o conteúdo das escolas, infelizmente não considera as particularidades de cada região, deixando de fora os saberes tradicionais. Além disso, o professor que atualmente leciona na comunidade Mirituba é indígena de outra etnia e não conhece tão a fundo as tradições Apurinã, dificultando a transmissão da cultura aos mais jovens.
Infelizmente, Dona Maria faleceu menos de um mês depois de conversar com a nossa reportagem. Com a cacique, morreram também muitos dos saberes que só ela carregava. Isso, nem o Projeto Educação Ribeirinha e nem a escola na comunidade foram capazes de preservar.
Uma escola construtivista no meio da floresta
Nos anos 1980, a italiana Bianca Bencivenni e o escocês Paul Clark conheceram e se apaixonaram pela Amazônia. Durante uma visita, um morador pediu que ajudassem a alfabetizar as crianças da região. Decidiram ficar e começaram ensinando inglês, matemática e português.
“Os pais não sabiam ler uma palavra, mas as crianças sabiam o nome de 100 espécies de peixe e de 500 plantas”, lembra Paul. Um conhecimento que não dependia de livros.
Em 1998, com a ajuda de amigos e moradores, fundaram uma escola em uma palafita à beira do rio Jauaperi, na divisa entre Amazonas e Roraima. Sem material didático, precisaram criar uma metodologia própria. Inspirados nas abordagens Montessori e Reggio Emilia, desenvolveram um método que valorizava a autonomia e a criatividade das crianças, conectando o ensino aos saberes tradicionais da floresta.
“Os livros fornecidos pela Prefeitura, com figuras de carros, banheiro e casa de concreto, não tinham significado nenhum para os alunos, que nunca tinham visitado uma cidade”, conta Bianca.
Por mais de 20 anos, centenas de alunos vindos de comunidades da região passaram pelo colégio do casal, batizado de Vivamazônia. A escola, infelizmente, não existe mais. Porém, o sonho de uma educação melhor para as comunidades ribeirinhas continua vivo – não só no coração de Paul e Bianca, mas também em projetos como o Educação Ribeirinha.
Fonte: Revista CRESCER / Ed. 370 Março 2025
