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Conheça Socotra – uma viagem de outro planeta

19 de Março, 2025

Por Flavia Pires

Viajante das mais experientes, a produtora de conteúdo Flavia Pires realizou o sonho de conhecer Socotra, ilha no Iêmen tão fantástica quanto isolada

Na primeira vez que vi uma foto da Ilha de Socotra, com suas famosas árvores Sangue-de-Dragão, há cerca de seis anos, o destino entrou automaticamente não apenas na minha wishlist, mas na minha must list. Minha vontade de conhecê-lo era tanta que se tornou quase uma obsessão. Minha primeira intenção era viajar até a ilha em 2020, mas a pandemia acabou colocando uma pausa nesse planejamento. Aos poucos o mundo foi normalizando, mas a guerra que há dez anos assola o Iêmen, país onde Socotra fica, não cessou.

O conflito começou em 2014, quando rebeldes Hutis, com apoio do Irã, tomaram a capital do país, Sanaa. Eles contestavam o governo do então presidente Hadi, acusando-o de corrupção e de não representar os interesses do povo. Em março de 2015, uma coalizão liderada pela Arábia Saudita interveio para apoiar o governo reconhecido internacionalmente. A guerra resultou em uma grave crise humanitária, com milhares de mortes, deslocamentos, escassez de alimentos e serviços básicos. O país foi assolado por ataques aéreos, confrontos terrestres e bloqueios que contribuíram para uma grande devastação. Diversas organizações humanitárias têm lutado para prestar assistência em meio à insegurança e à destruição. Grandes esforços de mediação e negociações têm sido feitos em busca de uma solução pacífica, mas os desafios persistem. A presença de grupos extremistas como a Al-Qaeda na Península Arábica complicou ainda mais a situação. Várias tentativas de negociações de paz foram feitas, inclusive com mediação da ONU, mas são poucos os avanços significativos. As partes envolvidas têm demonstrado relutância em ceder e as condições atuais dificultam a busca por um resultado pacífico. Pelo conjunto de tantos fatores complicados, a guerra no Iêmen é considerada uma das piores crises humanitárias do mundo.

Naturalmente, a pergunta que mais recebi, vinda de todos os lados, foi: “mas por que insistir em conhecer um lugar tão perigoso?” Quando comecei a anunciar minha ida a Socotra, em abril deste ano, havia também um fator seríssimo a mais a considerar: todo o problema que também está afetando o Oriente Médio. E eu sabia, desde o início, que não era mesmo a época mais apropriada para planejar uma viagem ao Iêmen, mas estava decidida que deste ano não passaria. Coisa de viajante exploradora e destemida.

Como de costume, um dos meus primeiros movimentos foi pesquisar extensivamente sobre o destino, considerado um dos mais isolados do mundo. Fiquei impressionada com as informações que encontrei. A ilha tem 3,7 mil km2 e está localizada no Oceano Índico, mais precisamente na costa do Mar Arábico, ao Sul da Península Arábica. Conhecida por sua paisagem única e exótica, com fauna e flora ricas e diversificadas, Socotra abriga cerca de 700 espécies endêmicas; ou seja, que não são encontradas em nenhuma parte do mundo, somente lá! Além disso, a paisagem ostenta lindas praias de areia branca, formações rochosas impressionantes e montanhas belíssimas, o que possibilita uma oferta de várias atividades ao ar livre, como mergulhos em barreiras de corais, escaladas e muitas opções de trilhas.

Chegar até Socotra é um desafio à parte. Por ser um destino remoto e de difícil acesso devido à guerra no continente, a única maneira de voar para lá é a bordo dos aviões de ajuda humanitária operados pela Air Arabia, companhia saudita que financia esse apoio junto ao Emirado de Abu Dhabi. Os voos saem somente às terças-feiras, partindo do Emirado, e levam cerca de duzentos turistas para Hadibo, capital da ilha. Na semana seguinte, retornam para buscar os turistas e levar um novo grupo. A temporada do turismo vai nesse ritmo de outubro a maio. Para entrar no País, é necessário adquirir um visto. E a compra desse bilhete aéreo precisa ser feita por um operador local. São cerca de dez empresas administrando os grupos de turismo e, em conjunto com a comunidade, elas cuidam dos acampamentos na ilha.

Apenas 50 mil pessoas habitam Socotra, preservando tradições inigualáveis. A população local tem a pesca e a ajuda humanitária como os únicos modos de sobrevivência, já que o solo é muito seco e impossibilita a agricultura. A condição de região autônoma do Iêmen influencia diretamente a política local, com um governo que administra questões internas relacionadas a infraestrutura, educação e saúde. Ainda assim, a sustentação do destino e a administração de fato vêm da Arábia Saudita. Essa influência fica visível com a adoção do islamismo como religião e as práticas diárias das tradições, especialmente no mês do Ramadã. Visitei a ilha exatamente nesse período e presenciei as rezas acontecendo seis vezes ao dia. Nossa programação da viagem, inclusive, foi organizada ao redor dos horários delas e era necessário estarmos de volta ao acampamento ao pôr do sol para respeitar a primeira refeição do dia.

A eletricidade, o gás e o combustível da ilha são fornecidos por Abu Dhabi e há rumores do interesse do Emirado, e também da Arábia Saudita, em financiar estrategicamente a região. Só o futuro pode dizer quais são os reais interesses desses governos com relação a Socotra.

“É emocionante imaginar que essas árvores estão ali há pelo menos cinco séculos, intactas”

Atualmente, não há hotéis e o saneamento básico é precário, o que faz com que a única forma de se hospedar na região seja acampando. Por lá os acampamentos são montados de maneira simples, com banheiros (geralmente em péssimas condições) compartilhados entre os visitantes, a comunidade local, guias e os motoristas. A regra é simples: incorporar o espírito viajante aventureiro, “sem frescura”, ou sofrer com a falta de estrutura.

As cozinhas são improvisadas e a falta de higiene é total. É um exercício diário abstrair os detalhes e fazer a viagem fluir,mas basta sempre se lembrar de como a paisagem natural intocada e todas as experiências envolvidas fazem valerqualquer perrengue.

Em 2008, Socotra foi declarada oficialmente Patrimônio da Humanidade pela Unesco, movimento que contribui com a sua valorização e sua preservação. Os habitantes da ilha também estimam com afinco a cultura única e a identidade presentes entre eles e enfrentam os desafios que surgem nesse sentido graças à pressão que o turismo tem feito. Vale destacar que a sustentabilidade ambiental e a proteção da biodiversidade da ilha são temas importantíssimos na agenda política local – ainda bem –, com esforços para equilibrar o desenvolvimento econômico e a preservação de um meio ambiente tão único, especial e peculiar.

Minha ida até Socotra contou com acompanhia da minha filha, Victoria, que completou 23 anos na viagem. Em geral, os grupos que vão até lá são pequenos, com no máximo 12 pessoas. Os viajantes se acomodam em uma caminhonete 4×4 com malas, colchões e um motorista. Durante as sete noites de estada, é ele quem monta os acampamentos.

Entre os passeios e os deslocamentos até cada acampamento, os dias são preenchidos por longos percursos, permeados por uma paisagem mais surpreendente do que a outra. A natureza é incrivelmente exuberante e a riqueza do visual é extraordinária. Durante nossos sete dias na ilha, estivemos em lugares remotos e únicos, sobre os quais eu conto mais detalhes a seguir.

ESCONDERIJO

Os lugares e experiências mais marcantes desta jornada por uma ilha remota e paradisíaca

Homhill

Homhill é uma trilha de aproximadamente duas horas, com um visual estonteante. Foi nela que tivemos nosso primeiro contato com as Bottle Trees, uma espécie endêmica de árvores da mesma família da famosa Rosa do Deserto, mas com dimensões muito maiores. Seu formato pouco comum é decisivo para a sobrevivência da espécie, que perde toda a folhagem durante a estação seca. Os caules são capazes de armazenar o equivalente a 100 mil litros de água, o que permite que elas sobrevivam às áridas condições de onde vivem. As flores são de uma beleza ímpar e o tronco dourado cria um contraste belíssimo com a árida paisagem. Fica claro porque Socotra é conhecida como o lugar mais alienígena da Terra: a natureza nos faz sentir parte de um filme de ficção científica, passado em outro planeta! Seguindo na trilha, chegamos a uma impressionante piscina de água natural e borda infinita, com uma vista deslumbrante. Passamos uma hora nos refrescando em deliciosos mergulhos, tentando computar tamanha beleza que nos recebeu.

Diksam Plateau

É em Diksam que se encontra o cartão-postal de Socotra, as árvores que são símbolo da ilha, conhecidas como Sangue-de-Dragão. O famoso planalto é o verdadeiro lar das Dracaenas Cinnabari, nome científico dessa espécie que tanto marca o destino. Reza a lenda que a primeira delas nasceu da briga entre dois dragões. Eles teriam lutado até a morte e a primeira árvore seria resultado da união desse sangue. A aparência delas é surreal. Prosperam em ambientes áridos e são uma parte importante do ecossistema local. Conhecidas por terem seiva vermelho-sangue, troncos grossos e forma única de guarda-chuva, funcionam ao contrário de outras árvores: elas recolhem a água da neblina, e não do solo, e por isso só nascem na altitude e com essas condições climáticas de Socotra.

Dihamri

Sem dúvidas nosso acampamento mais bonito foi em Dihamri. A região é rodeada por conchas naturais gigantes e uma baía belíssima, na qual pudemos mergulhar com uso de snorkel, alugado ali mesmo, para observar um recife de corais repleto de espécies marinhas. A estimativa é de que Socotra tenha cerca de 700 espécies de peixes, 300 de caranguejos, lagostas e camarões. O mergulho durou cerca de duas horas e voltei à terra firme encantada com a beleza indescritível que pude presenciar.

Caverna de Dagub

Já tive a oportunidade de visitar muitas cavernas no mundo, mas Dagub certamente bateu todas elas. Com formações únicas nas rochas, plantas bioluminescentes e tesouros escondidos, a caverna é uma verdadeira joia na ilha.

“A natureza nos transporta para um verdadeiro filme de ficção científica, como se estivéssemos em outro planeta!”

Zahek

Poucos momentos me marcaram tanto na vida quanto poder assistir ao pôr do sol dessa região de dunas. Um lugar que impressiona pela dimensão e pela altura. Inesquecível!

Wadi Kalissan

Cânion de beleza ímpar e incomparável, Kalissan fica no caminho para Dihamri e pode ser acessado por uma trilha bem irregular, mas que recompensa os visitantes com a imensidão do vale e com piscinas naturais em tons de um verde deslumbrante. A água contrasta lindamente com o calcário das pedras ao redor, efeito que nos deixou extasiados.

Aproveitamos o trajeto e passamos um bom tempo contemplando, escalando as pedras entre um mergulho e outro e aproveitando a sensação de estar completamente embriagados pela beleza natural.

Fermhin

Mais de 80 mil árvores Sangue-de-Dragão, todas com cerca de 500 anos, se espalham na floresta de Fermhin. Durante a caminhada, vamos nos perdendo nos caminhos da floresta, atentos ao formato de cada árvore.

É emocionante e mágico imaginar que estão ali há pelo menos cinco séculos, intactas. No entanto, a enorme e crescente quantidade de cabras na ilha se apresenta como um grave problema na preservação dessa espécie endêmica. Esses animais comem as árvores ainda pequenas, o que tem se mostrado um empecilho para sua perpetuação.

Medidas estão sendo tomadas por meio do cerco dos berçários das espécies, um trabalho lento, que exige investimento e tempo.

Qalansiyah

Entre todos os lugares no mundo que já tive o prazer de visitar, posso afirmar sem sombra de dúvidas que encontrei a praia mais bonita em que já estive na vida em Qalansiyah. A transparência da água, o contraste com a areia branca virgem e as falésias no entorno fazem desse lugar único o significado real de paraíso na Terra.

Detwah

Próxima à praia de Qalansiyah se encontra Detwah, uma lagoa deslumbrante. Montamos acampamento perto dela e, pertinho do fim da tarde, subimos uma montanha para apreciarmos o pôr do sol mais lindo da ilha e tirarmos muitas fotos das Bottle Trees do alto da montanha.

Wadi Dirhur

Um verdadeiro oásis em volta de uma piscina de água doce, Wadi Dirhur tem até mesmo um toboágua natural em meio às rochas avermelhadas. A cor forte das rochas contrasta de maneira lindíssima com o verde da vegetação, criando um cenário digno de filme.

Caveman

O personagem mais famoso da ilha é o Abdullah, conhecido como Caveman (homem da caverna), um exímio pescador que vive em uma caverna com uma vista deslumbrante da lagoa de Detwah. Geralmente, o Abdullah oferece um almoço aos seus visitantes, mas, como era época do Ramadã, participamos de uma pescaria com ele na lagoa em frente à caverna.

Lá pudemos acompanhá-lo na pesca de vieiras, ostras e ouriços, e, em seguida, degustar os mariscos recém-retirados do mar. Uma experiência ímpar para quem, assim como eu, é amante de frutos do mar.

Shuab

Outro grande destaque da viagem foi um delicioso passeio de barco nas falésias da Costa Oeste da ilha, em direção à praia paradisíaca de Shuab. A água cristalina e o contraste com as rochas gigantescas, além dos raios de sol de um dia perfeito tocando a água e as pedras, pintaram um cenário memorável e ajudaram a construir um momento inesquecível.

Era o aniversário de 23 anos da minha filha Victoria e foi um momento lindo, para guardar para sempre do lado esquerdo do peito.

Nossa viagem só foi possível graças à Mundus Travel (@mundustravel), agência brasileira que, em conjunto com uma operadora local de total confiança, organizou cada detalhe e nos passou toda a segurança necessária para visitarmos um destino de acesso complicado.

 Foram eles que organizaram os voos, providenciaram os vistos e nos proporcionaram uma das experiências mais valiosas das nossas vidas. Voltei de Socotra não apenas com um sonho realizado, mas com mais bagagem emocional e cultural do que jamais poderia ter imaginado – e olha que imaginei bastante!

Fonte: Matéria Revista Carbono

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